Passos sem memória
Olho pela janela e não vejo o mar. As gaivotas
andam por aí e a relva vai secando no varal. Manhã cedo,
o mar ainda não veio. Veio o pão, veio o lume
e o jornal. A saliva com que te hei-de dizer bom dia.
As palavras são as primeiras a chegar. O que fica delas
amacia o papel. Pão quente com o sono de ontem
e os sonhos de hoje. Prepara-se o dia, os passos
de ir e vir. Estou cada vez mais perto. Olhas-me
como se soubesses o que hei-de saber mais logo.
Nesta cidade nunca é meio-dia. Há sempre uma doçura
de outras horas. E recordações avulsas. Deixa-as sair
de dentro do vestido, deixa soltar as ondas do mar.
A janela está vazia. O meu filho caminha na praia
e tu soletras as gaivotas. Caminha à minha frente
sem deixar pegadas. Perco-me como todas as mães,
todos os amantes. Invento passos e palavras
para adormecer. A esta hora a minha avó enrolava o rosário
nas mãos. Eu estava dentro das contas, dentro do sono
que rondava a prece. Durante muito tempo estive fora.
Agora caminhamos juntos. Sem memória.
Rosa Alice Branco, "Soletrar o dia"
3 Comments:
5 estrelas. Fico muito contente com a tua colaboração, porque só podia ser em grande.... :) belo desenho e texto muito ... cativante.
21/8/05 8:34 da tarde
venho retribuir a tua visita e ei senão quando encontro umc antinho recheado de palavras lindas, daquelas eternas. obrigada pela partilha e, por favor, continhua a enriquecer este blog com essas imagens.
beijinho
22/8/05 9:53 da manhã
Gosto das palavras, mas acho que o traço do teu desenho ilustra muito bem o olhar vazio, "sem memória", que todos nós temos de vez em quando, fixado num horizonte de pensamentos que acabam por se afundar em nós: melancolia.
Continua.
22/8/05 7:27 da tarde
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