...{ POESIA PARA OS DIAS TRISTES E PARA OS DIAS FELIZES }... "Recolho-me num casulo, quando quero pensar em ti, em mim, no mundo. E levo comigo as coisas que me fazem feliz."

segunda-feira, agosto 29, 2005

Auto-retrato

Para onde quer que vá
já lá estive
o que quer que faça
não posso decidir
quem quer que eu ame
é uma parte
por muito que morra
fico com vida

[Eva Christina Zeller
Sigo a Água
Tradução e prefácio de
Maria Teresa Dias Furtado
Relógio d´Água
1996
]

Podia muito bem ser o meu próprio retrato...

sábado, agosto 20, 2005

Passos sem memória


Olho pela janela e não vejo o mar. As gaivotas
andam por aí e a relva vai secando no varal. Manhã cedo,
o mar ainda não veio. Veio o pão, veio o lume
e o jornal. A saliva com que te hei-de dizer bom dia.
As palavras são as primeiras a chegar. O que fica delas
amacia o papel. Pão quente com o sono de ontem
e os sonhos de hoje. Prepara-se o dia, os passos
de ir e vir. Estou cada vez mais perto. Olhas-me
como se soubesses o que hei-de saber mais logo.
Nesta cidade nunca é meio-dia. Há sempre uma doçura
de outras horas. E recordações avulsas. Deixa-as sair
de dentro do vestido, deixa soltar as ondas do mar.
A janela está vazia. O meu filho caminha na praia
e tu soletras as gaivotas. Caminha à minha frente
sem deixar pegadas. Perco-me como todas as mães,
todos os amantes. Invento passos e palavras
para adormecer. A esta hora a minha avó enrolava o rosário
nas mãos. Eu estava dentro das contas, dentro do sono
que rondava a prece. Durante muito tempo estive fora.
Agora caminhamos juntos. Sem memória.

Rosa Alice Branco, "Soletrar o dia"

quinta-feira, agosto 11, 2005

Se eu nunca disse que os teus dentes

Se eu nunca disse que os teus dentes
São pérolas,
É porque são dentes.
Se eu nunca disse que os teus lábios
São corais,
É porque são lábios.
Se eu nunca disse que os teus olhos
São d'ónix, ou esmeralda, ou safira,
É porque são olhos.
Pérolas e ónix e corais são coisas,
E coisas não sublimam coisas.
Eu, se algum dia com lugares-comuns
Houvesse de louvar-te,
Decerto buscava na poesia,
Na paisagem, na música,
Imagens transcendentes
Dos olhos e dos lábios e dos dentes.
Mas crê, sinceramente crê,
Que todas as metáforas são pouco
Para dizer o que eu vejo.
E vejo olhos, lábios, dentes.

Reinaldo Ferreira Livro I, Um voo cego a nada, s.l.

quarta-feira, agosto 10, 2005

Paisagem de fim de século

Vou comprar a Vénus de Milo
para a pôr a servir de cabide no meu quarto

Um arroto dos meus é mais romântico que uma valsa
de Strauss

No fundo o que eu tenho é vocação de incendiário
Assim como Nero
Como não posso incendiar Roma contento-me em
incendiar o teu coração

A minha linguagem muitas vezes confunde-se com
a dovento
Ambos estamos metidos até ao pescoço no comércio
do pólen

Não ponham orquídeas à minha frente, senão
vomito

O céu é azul e as tuas mamas são rosadas
Obrigado mas só bebo leite pasteurizado


[ Jorge de Sousa Braga,
in O Poeta Nú
]

segunda-feira, agosto 01, 2005

Fósforo

Se acendes um fósforo durante o dia
para ver,
significa que não há janelas nem electricidade,
nem sequer sol.
Ou então significa que és louco.


[ Gonçalo M. Tavares,
in 1, Relógio D'Água
]